A democracia começa em casa: o voto como espelho das figuras parentais

A forma como uma criança experimenta o poder é a base de tudo o que virá depois. Antes de conhecer o Estado, ela conhece o olhar dos pais. É na relação com as figuras materna e paterna, sejam elas presentes ou ausentes, que se funda o modo de lidar com a autoridade, o limite e a alteridade.

Se o poder familiar é arbitrário, se o amor depende da obediência, a criança aprende cedo que discordar é perigoso. Se, ao contrário, cresce sem referências estáveis, aprende que ninguém é confiável. Em ambos os casos, forma-se um sujeito que, na vida adulta, tende a buscar líderes fortes para restaurar a sensação de segurança perdida ou a rejeitar toda forma de autoridade, sem conseguir construir algo em seu lugar.

Pais que mandam demais, pais que somem

Ferenczi descreveu o impacto devastador do desmentido — quando a dor da criança é negada justamente por quem deveria acolhê-la. O que nasce daí é uma confusão psíquica: quem detém o poder não protege, quem sofre não é acreditado. Essa inversão gera desconfiança no laço humano e uma clivagem interna que perdura.

Na vida adulta, essa ferida se traduz em formas patológicas de relação com o poder. Alguns se submetem ao autoritarismo em busca de uma autoridade idealizada; outros o repetem, exercendo dominação para não voltar a sentir impotência.

De um modo ou de outro, o pensamento crítico se empobrece, a figura do líder substitui o exercício de pensar.

A herança da obediência e da revolta

Freud, em O mal-estar na civilização, lembra que o superego é herdeiro da autoridade parental: ele representa internamente a voz do pai e da mãe. Quando essa voz foi tirânica ou imprevisível, ela tende a se fixar na forma de culpa, submissão e medo de errar.

A política, então, se torna o palco onde esse drama infantil se repete. Vota-se movido por ressentimento, necessidade de aprovação, medo da punição ou desejo de um “salvador”. E é assim que muitos entregam a própria liberdade a figuras que prometem ordem, mas cultivam obediência cega.

A infância que não aprendeu a dialogar gera o adulto que não suporta o dissenso e o espaço democrático se empobrece.

A democracia como função psíquica

Hannah Arendt escreveu que a capacidade de pensar é o antídoto contra a barbárie. Mas pensar, no sentido profundo, exige espaço interno, aquele mesmo espaço que se forma quando uma criança é ouvida.

A democracia, antes de ser um regime político, é uma função psíquica: a de poder sustentar a diferença, reconhecer o outro como legítimo, simbolizar o conflito.

Winnicott chamava isso de ambiente “suficientemente bom” não perfeito, mas confiável. É nele que se aprende a confiar sem se submeter, a desejar sem destruir, a coexistir sem medo. Onde não há essa experiência, instala-se a lógica binária: ou mando, ou obedeço.

Educar para o dissenso

Educar para a democracia é, antes de tudo, educar para a convivência com o diverso. Significa permitir que a criança tenha voz, que o “não” possa existir sem ser punido, que o diálogo substitua a ameaça.

A casa, nesse sentido, é a primeira instituição democrática ou seu oposto. É ali que se aprende o valor da escuta, do argumento e da responsabilidade.

Quando adultos votam movidos por medo, raiva ou idealização, não é apenas um problema de desinformação, mas de formação emocional. O voto se torna sintoma de uma infância que não aprendeu a confiar nem a elaborar o conflito.

Cuidar da democracia é cuidar da infância

Se queremos cidadãos capazes de sustentar o debate público sem recorrer à violência, precisamos começar pelo início: o modo como cuidamos dos vínculos, dos afetos e das frustrações das crianças.

A democracia começa quando alguém pode discordar e, ainda assim, continuar sendo amado.

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