Quando penso sobre o desenvolvimento da nossa psiquê, gosto de visualizar uma travessia — delicada, silenciosa, mas fundamental. É um processo que começa em um terreno onde ainda não há separações claras entre “eu” e “não eu”, e que, pouco a pouco, vai nos conduzindo a um encontro com a realidade, onde habitamos de forma mais consciente e integrada nosso próprio existir.
No início da vida, nossa mente ainda opera sob o chamado processo primário: um funcionamento psíquico dominado pelo princípio do prazer. Não há distinções, não há limites entre o que sentimos e o que nos rodeia. Somos um com o mundo. Aos poucos, com a maturação, entramos no princípio da realidade — e essa passagem não acontece sem um certo custo emocional.
Primeiro, vivemos a experiência de não mais sermos indiferenciados do mundo. Surge, então, a percepção de que existe um “eu” e um “não eu” — uma separação necessária para que possamos, mais adiante, dizer: “eu sou”. Essa conquista, que parece tão simples, envolve uma série de movimentos internos: a consciência da própria existência, a capacidade de adquirir experiências, de interagir com o mundo de forma projetiva e introjetiva, e de construir uma realidade compartilhada com o outro.
É a partir da interação com o “não eu” — com o mundo — que nos enriquecemos. Quando somos vistos, reconhecidos e compreendidos por alguém, podemos formar uma imagem positiva de nós mesmos. Desenvolvemos a esperança: a crença de que somos bons, que merecemos coisas boas e que podemos habitar o mundo de forma confiante.
Mas essa integração não é automática. Ela depende da conexão entre a nossa mente e o nosso corpo — o que chamamos de coesão psicossomática. Quando o “eu sou” se separa dessa integração corpo-mente, abre-se espaço para reações persecutórias: o mundo externo passa a ser vivido como uma ameaça, o “não eu” é rejeitado. É nesse contexto que muitas doenças psicossomáticas têm origem — mostrando como mente e corpo estão intimamente entrelaçados.
Essa perspectiva é sempre interdisciplinar: o sofrimento psíquico provoca mudanças no corpo, que podem se manifestar de maneiras diversas, e que tanto podem ser curadas quanto intensificadas dependendo dos caminhos que escolhemos ou conseguimos acessar.
A construção da identidade exige a integração do eu no tempo e no espaço, o habitar da psiquê no corpo, o início das relações objetais — ou seja, a capacidade de se relacionar com o outro como um ser separado — e, assim, a constituição de si mesmo. Melanie Klein e Winnicott dedicaram-se a entender essas relações iniciais de díade (mãe-bebê), enquanto Freud trouxe o olhar para a complexidade das relações triangulares, que só se estruturam quando o ego já está em formação. Onde não há ego, há marcas afetivas inomináveis — aquilo que chamamos de clínica do vazio, do não vivido.
A qualidade do olhar da mãe para o bebê é um dos primeiros grandes fundadores dessa estrutura psíquica. O olhar que reconhece, acolhe e confirma a existência da criança cria uma ilusão necessária: a de ser amado e bem-vindo ao mundo. Contudo, essa ilusão, para dar lugar a um amadurecimento saudável, precisa ser interrompida pela desilusão: perceber que não somos o centro do mundo da nossa mãe. Que viemos depois, que já havia algo — ou alguém — preenchendo o seu espaço.
Essa é uma experiência inevitável da vida: sentir-se incluído sem ser exclusivo. Aceitar que podemos ser importantes sem sermos tudo. É justamente esse o caminho que percorremos na análise: ajudar o paciente a sair da forma infantil de viver, em direção a uma forma adulta de estar no mundo.
Mas essa transição não acontece de forma mágica. Ela requer tempo de elaboração, exige atravessar lutos, e implica, sim, um custo psíquico. Requer coragem — para deixar para trás ilusões necessárias, e, ao mesmo tempo, criar novos modos de se relacionar consigo e com o outro.
É um processo. Um movimento vivo de transformação, feito de pequenos passos silenciosos — e, muitas vezes, doloridos — rumo a uma existência mais consciente, integrada e real.