Gratidão, solidão e a constituição do self: um olhar para os primórdios da vida psíquica

Muitas vezes, quando falamos sobre gratidão, pensamos em algo simples, automático — como um sentimento que surge naturalmente à medida que amadurecemos. Mas, olhando mais de perto, percebo que a gratidão verdadeira é uma conquista profunda, que exige uma travessia emocional delicada.

Melanie Klein, uma das grandes pensadoras da psicanálise, descreveu os primeiros momentos da vida psíquica do bebê como um campo de intensas tensões. No início, estamos imersos naquilo que ela chamou de fase esquizoparanóide: um funcionamento onde o mundo é vivido de forma dividida — tudo o que é bom está separado do que é mau, e o que vem de fora é, muitas vezes, sentido como ameaçador.

Somente mais tarde, com a evolução emocional e relacional, é que o bebê alcança o que Klein nomeou de posição depressiva. Aqui, começa a se formar a capacidade de integrar experiências opostas, de perceber que o objeto amado e o objeto frustrante são o mesmo. É a partir desse reconhecimento que a gratidão pode surgir: a compreensão de que não sou onipotente, de que o que me sustenta vem também do outro — e que posso agradecer, não apenas pelo que recebo, mas também pelo que sou capaz de ser.

É interessante lembrar que Klein analisou Winnicott, outro pensador fundamental, que se dedicou a entender os primórdios da constituição do self na criança. Perto do primeiro ano de vida, se houver uma base orgânica saudável e uma “mãe suficientemente boa” — aquela que consegue ser responsiva, sem ser perfeita —, o bebê pode desenvolver sentimentos de consideração e gratidão. Esse desenvolvimento emocional é uma verdadeira conquista, que lança as bases para a capacidade de viver em um mundo compartilhado.

Mas a travessia não é simples. O ódio também faz parte do caminho — e não depende de o bebê ter ou não uma mãe suficientemente boa. A onipotência primária, tão necessária nos primeiros tempos de vida, é inevitavelmente confrontada. Seja pela ausência do que se deseja, seja pela própria dependência sentida no recebimento, o bebê experimenta uma queda do seu sentimento de potência total. É uma dor fundante, que pede um ambiente acolhedor e confiável para ser elaborada.

Se o ambiente é suficientemente bom, o bebê consegue constituir um mundo interno capaz de oferecer descanso. A solidão, nesse caso, não é vivida como abandono, mas como uma experiência integrativa: a possibilidade de estar só sem se sentir desamparado, de habitar um espaço pessoal ao mesmo tempo em que se reconhece como parte de um mundo compartilhado.

Por outro lado, quando o ambiente é invasivo, inconsistente ou não confiável, o que surge é o isolamento — uma defesa persecutória. Nesse estado, estar só se torna sinônimo de angústia, sofrimento, carência afetiva, raiva de si e dos outros. Não é uma escolha; é uma prisão emocional.

Essa distinção entre solidão e isolamento é algo que observo, ainda hoje, tanto em mim quanto nos pacientes com quem trabalho. A capacidade de estar só, de descansar em si mesmo, é uma conquista que começa lá atrás, nos primeiros encontros, nas primeiras ausências, nas primeiras experiências de ser visto e sustentado por outro.

Percorrer esse caminho — do desamparo inicial à capacidade de gratidão e solitude — é talvez um dos maiores desafios e também uma das maiores vitórias no nosso processo de constituição como seres humanos.

Últimas matérias

× Como posso te ajudar?