Lidando com demências na velhice: quando o tempo inverte os papéis

Há um momento em que o tempo dá meia-volta. O pai que cuidava agora precisa de ajuda para se vestir. A mãe que orientava já não lembra o nome dos filhos. O companheiro de uma vida passa a depender de quem antes era amparado por ele.

O envelhecimento, quando vem acompanhado de Alzheimer, Parkinson ou outras demências, inverte os papéis e desorganiza as posições afetivas. O amor permanece, mas muda de forma, passa a conviver com a dor da perda lenta, com o medo e com o cansaço.

É um tipo de luto que acontece em parcelas: perde-se um pouco a cada esquecimento, a cada gesto que já não reconhece o cotidiano partilhado.

Entre a ternura e a raiva

Cuidar de quem se fragmenta exige uma paciência quase sobre-humana. Mas ninguém é feito apenas de paciência. Há momentos de ternura e de revolta, de compaixão e de exaustão.

Winnicott lembrava que o amor verdadeiro inclui a capacidade de odiar, porque só quem reconhece o próprio ódio pode cuidar sem se destruir. A raiva que surge diante da repetição, do esquecimento e da dependência não é sinal de falta de amor; é expressão do conflito entre o desejo de manter o vínculo e a impossibilidade de fazê-lo como antes.

É aí que o cuidador precisa de espaço para existir. Quando não há lugar para suas contradições, o afeto vira peso, e o cuidado se torna silenciosamente violento, não por maldade, mas por esgotamento.

O companheiro que se torna pai, o filho que se torna adulto

A demência de um cônjuge ou de um pai faz o sujeito ocupar um papel que nunca quis. O companheiro se torna cuidador, o filho vira pai, e o tempo passa a ser medido pelos remédios, consultas e pequenas vitórias diárias.

Essa inversão de papéis desorganiza a identidade. O amor conjugal, atravessado pela dependência, perde a reciprocidade. O filho que precisa decidir pelo pai revive culpas antigas e se vê dividido entre a lealdade e o desejo de retomar a própria vida.

Ferenczi falava da linguagem da ternura, uma comunicação que ultrapassa as palavras e se expressa em gestos, toques, olhares. Nos estágios avançados da doença, é essa linguagem que resta. Mas, para que ela exista, o cuidador precisa também ser acolhido em sua vulnerabilidade.

O desamparo compartilhado

As doenças neurodegenerativas expõem o que tentamos negar: todos somos, em alguma medida, frágeis. O idoso que perde a autonomia e o filho que se perde tentando sustentá-la vivem o mesmo desamparo, de lados diferentes do espelho.

É nesse espaço que o acolhimento faz diferença. A escuta terapêutica, o suporte social e os grupos de cuidado são formas de impedir que a dor se transforme em solidão. Cuidar de alguém que esquece exige que alguém se lembre, não apenas das tarefas, mas de quem está cuidando.

Acolher quem cuida

A cultura tende a exaltar a dedicação e o heroísmo dos cuidadores, mas pouco se fala do que esse papel cobra. O cuidado cotidiano, prolongado e sem rede de apoio, esgota o corpo e o psiquismo.

Acolher o cuidador é tão importante quanto tratar o paciente. Significa reconhecer que o amor não se mede pela ausência de sofrimento, mas pela capacidade de continuar mesmo quando o outro já não retribui.

Na demência, o amor é um trabalho silencioso de presença. E só é possível quando quem cuida encontra um lugar onde também possa ser cuidado.

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